CRÔNICAS PARA LER NA ESCOLA


CRÔNICAS PARA LER NA ESCOLA - Kledir Ramil 
seleção e apresentação de Regina Zilberman

Kledir Ramil escreve de forma divertida sobre temas interessantes do dia a dia. Com um estilo leve, original e muito bem-humorado, Kledir reflete sobre assuntos variados como um jogo de futebol, a internet, o Carnaval, a relação entre pais e filhos, os avanços da ciência, as profissões, a nossa “língua brasileira” e os bastidores de sua atividade de cantor e compositor.


editora Objetiva 
http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=1357

versão impressa e versão digital
SARAIVA http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/6792331

iTunes
https://itunes.apple.com/br/book/kledir-ramil-cronicas-para/id806320269?mt=11

SANTA INÊS

Nasci numa quarta feira, 21 de janeiro do século passado, num fim de tarde quente, em pleno verão gaúcho, na cidade de Pelotas. Quis o destino que eu viesse ao mundo justo na data do calendário abençoada por Santa Inês, padroeira das virgens, das moças e da castidade. Além dos jardineiros.
Como nunca fui muito chegado à prática da jardinagem, me dediquei com entusiasmo ao exercício da castidade, até o momento em que, descobertas certas particularidades da natureza humana que chegam com os hormônios da juventude, não foi mais possível continuar com a abstinência completa dos prazeres da carne.
Foi então que decidi fazer um curso de jardinagem, para tentar equilibrar as energias que circulavam pelo meu corpo e dar alguma satisfação para minha santa madrinha. Habilitado a mexer na terra, comecei a plantar flores, trepadeiras e até mesmo uma pequena horta de produtos orgânicos. Entretanto, com o passar do tempo, as plantinhas foram murchando e secando, o que entendi como um sinal vindo do alto.
Passado o fracasso da minha investida botânica, não tive outra opção a não ser voltar a encarar os desígnios que o destino havia traçado para mim: uma vida casta. Para alegria de minha madrinha.
Procurei algum significado alternativo na extensão da palavra castidade e encontrei o sentido de pureza. Viver com pureza não significaria abstenção, mas um comportamento sem malícia. Gostei. Essa visão encaixava com o meu perfil.
Desde então tenho buscado viver em estado de pureza, virtude daqueles que não têm maldade, agem corretamente, não se deixam corromper e não abrem mão da integridade, decência e retidão de princípios. Para me proteger das agressões do mundo contemporâneo, criei meus mecanismos de defesa.
Outro dia, fizeram um depósito equivocado em minha conta corrente, com um valor bem significativo. O erro não seria identificado, se eu ficasse quieto. Cheguei a pensar em voltar à pratica da jardinagem, mas lembrei que não tenho mão pra isso. Tampouco tenho mão leve pra ficar com um dinheiro que não é meu. Não tive saída, devolvi o dinheiro.
Minha madrinha deve ter ficado orgulhosa.

A TARTARUGA DE KRISHNA

No verso 58, do segundo capítulo do Bhagavad Gita, Krishna fala a seu discípulo Arjuna sobre a importância do Prathyahara, usando como metáfora a tartaruga, um animal que é capaz de se retrair para dentro do próprio casco, eliminando assim o contato com o mundo exterior.
Para alguém mais desavisado, pode parecer que Krishna está sugerindo a seu discípulo que ele não deve agir. Na verdade, o ensinamento é para que ele aprenda a dominar os sentidos, não se deixe levar por eles. Estar no mundo, sem ser do mundo. Continuar agindo, sem se apegar aos frutos da ação.
Prathyahara, o 5o passo da Yoga segundo Patanjali, é o controle dos sentidos, importante para não sermos seduzidos pelo “canto de sereia” de Maya, o mundo dos prazeres e da ilusão. É um conhecimento necessário para quem pretende encontrar a felicidade – que é a própria essência da natureza humana – e realizar o Samadhi, a única experiência verdadeira.
Mais adiante, no capítulo 3 do Gita, Krishna fala sobre Karma Yoga, a Yoga da Ação. Agir ou não agir, a dúvida que atormenta Arjuna, atravessa os tempos e continua nos dias de hoje. Acontece que não existe a opção de não agir, mesmo que você resolva “estar uma árvore”, como diria Manoel de Barros. Onde há vida, existe movimento. Arjuna aprende que o importante é fazer as coisas com amor. Parece simples e é mesmo, desde que você consiga se livrar dessa carga pesada chamada Ego. Essa sim, uma tarefa difícil.
Certa vez escrevi que “nós, os bilhões de seres humanos que giramos pelo espaço a bordo deste planeta simpático, temos feito muita besteira, mas também temos produzido obras extraordinárias como a Muralha da China, o iPhone, a 9a Sinfonia e a Giselle Bündchen”. Se estivéssemos recolhidos dentro do casco, é provável que a roda ainda não tivesse sido inventada.
Gosto dos que não se omitem, dos que ousam correr riscos. A idéia de se enfiar dentro do próprio casco apenas para se proteger do mundo exterior me incomoda. Me interessa o recolhimento como momento de reflexão, para poder entrar em ação com sabedoria.
Vejo muita gente levando uma vida de ameba, cheia de medos e cuidados para não comprometer o sonho de uma vida eterna. Preocupados em reprimir pecados, não produzem nada de útil e interessante. A questão não se resume a não fazer o que é errado. É preciso ter a coragem de dar o passo seguinte. Yama e Niyama.
“Pedra que rola, não cria limo”.

COMO SÓI ACONTECER

Como sói acontecer todo ano, na época de Natal, nos reunimos os seis irmãos (e os agregados) com a intenção de comprar um presente coletivo para a nossa mãe. A idéia é sempre bem-vinda por todos. Com uma vaquinha, se consegue dar um presente mais significativo, sem pesar demais no bolso de cada um. Até aí a conversa costuma ser tranqüila. O problema surge na hora de decidir qual será o presente.
Tomar decisões não é coisa fácil, mas diz o ditado que “várias cabeças pensam melhor do que uma”. A verdade porém é que várias cabeças pensam “mais” do que uma, não necessariamente “melhor”.
A quantidade de sugestões que surgiram foram tantas que foi preciso organizar uma assembléia para decidir qual seria o presente mais adequado para uma senhora “madura” (para usarmos um eufemismo) que “já tem tudo o que precisa”, segundo a avaliação de alguns mais precipitados.
Lembrei, por exemplo, que ela ainda não possui a nova Porsche 911 Carrera S, mas ninguém levou a sério meu comentário. Confesso que gosto de tumultuar esse tipo de encontro e sempre dou uns palpites furados com a intenção de ver o circo pegar fogo. Pois bem, pegou. Não por causa da minha Porsche e sim pela sugestão do meu cunhado, que se ofereceu para ser o depositário das contribuições e foi logo fornecendo o número de sua conta bancária. O que levantou suspeitas.
Argumentei que não poderia fazer o depósito agora porque meu 13o só sai em janeiro. Meu cunhado, um sujeito meio estranho, gestor de grandes empresas, questionou que 13o era esse, já que não sou assalariado. Aproveitei para fazer uma manifestação denunciando a discriminação contra os artistas brasileiros que, além do 13o, também não têm direito a aposentadoria. O sujeito tentou fazer uma piada: “quem mandou fugir da escola?”. Foi a gota d’água. Água é um modo de dizer, pois a essas alturas bebiam de tudo.
Como sói acontecer, o debate virou uma batalha campal e só não houve vítimas porque a Brigada Militar se fez presente. Em grande estilo. Inclusive com a cavalaria.
O comandante da tropa, impôs ordem no recinto, abriu inquérito policial e, ao tomar pé da situação através dos interrogatórios, arriscou uma sugestão: “quem sabe uma geladeira com freezer?”. Pelo que tinha ouvido falar, a velha (a geladeira) já está pra lá de Bagdá.
Levantei o dedo e fiz apenas um pequeno comentário: “é uma fria”. Foi o suficiente para que a discussão voltasse em alta temperatura e começassem a voar cadeiras.
Foi nessa hora que entrou a cavalaria, jogando gás lacrimogêneo.

FLOR DO LÁCIO

Nossa Língua Brasileira é filha da Portuguesa. Oficialmente isso não existe, mas é assim que eu sinto, é isso que eu ouço pelas ruas, uma linguagem muito nossa, própria do Brasil. A Língua Portuguesa, por sua vez, deriva do Latim Vulgar que era falado no Lácio, uma região da Itália.
O fato de ser originada de uma linguagem do povo me deixa à vontade, pois tenho me aventurado pelo mundo da literatura sem ter uma formação acadêmica. Sou um moleque de rua, um compositor de música popular. Comecei a juntar palavras para encaixar nas melodias que soavam na minha cabeça e essa brincadeira virou minha profissão. Depois de anos escrevendo canções, acabei desenvolvendo por nossa língua um amor tão grande que me deu coragem para invadir o terreno da prosa. E comecei prudentemente pela crônica, que é dentro da literatura a forma mais simples de todas. Tão simples que até um cantor de rádio é capaz de conseguir.
A expressão “Flor do Lácio” tem sido usada para simbolizar a nossa língua. Vem do soneto “Língua Portuguesa”, do poeta Olavo Bilac, que nasceu em 1865 e se foi em 1918. O primeiro verso diz: “Última flor do Lácio, inculta e bela”, se referindo ao nosso idioma como a última língua derivada do tal Latim Vulgar falado no Lácio. O termo "inculta" faz menção ao fato de ser uma língua do povo, diferente do Latim Clássico, que era usado pelas classes superiores. Ao mesmo tempo, conseguia ser "bela", apesar de sua origem humilde.
Imagino que você deve saber recitar de cor o poema de Bilac, mas caso tenha faltado à aula nesse dia, anota aí:

Última flor do Lácio, inculta e bela
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

A PÍLULA DA FELICIDADE

Minha mulher foi fazer uma consulta para tratar de sua enxaqueca e o doutor chegou a conclusão que ela precisava tomar antidepressivo. Agora virou moda. Tudo que é médico acha que o paciente tem que tomar um comprimido desses pra dar um up, pra segurar a barra do dia a dia.
O problema é que minha mulher já é acelerada por natureza. Não sei de onde o cara tirou essa idéia. O resultado é que ela entrou num estado de euforia permanente e começou a apresentar um comportamento de risco. Risco dela, da família e da sociedade em geral. Acordava às 5 da manhã. Fazia esteira, lendo o jornal e vendo TV. Ia pra cozinha, ligava todos os aparelhos, preparava o café de todo mundo, adiantava o almoço, o jantar, batia um bolo e misturava açaí com granola no liquidificador. Aí, com o som da sala em alto volume, nos empurrava pra fora da cama e começava a sessão de ginástica aeróbica.
Tentei consolar meus filhos: “Não se preocupem. São os comprimidos. Vou falar com o doutor”. Ninguém agüentava mais. Eu andava com o corpo dolorido de tanto exercício e não podia nem sentir cheiro de açaí.
Depois da invenção do antidepressivo, começaram a tomar esse negócio como se fosse uma vitamina que estivesse faltando no organismo. É como se Deus, na hora de criar Adão, tivesse esquecido de colocar a pilha de 9 volts.
Hoje, qualquer situação é desculpa. Se alguém quer emagrecer, antidepressivo. Quer engordar, antidepressivo. Se quer relaxar, se quer ficar ligado, o remédio é sempre o mesmo. Para qualquer sintoma. Não é à toa que é chamada de “a pílula da felicidade”.
Tá todo mundo tomando. E se você não toma, fica fora do tom.
Fui numa festa animadíssima, pura alegria. O único infeliz era eu. Parecia que ninguém tinha contas pra pagar, problemas no escritório e filhos pra criar. Lembrei de Aldous Huxley e seu Admirável Mundo Novo, onde também havia um negócio pra tomar.
Essa idéia do elixir da felicidade acompanha o homem desde os primórdios da civilização. E como a curiosidade mata, resolvi experimentar.
Inventei uma dor no braço, fui numa clínica e saí com uma receita de antidepressivo. Comecei a tomar e me deu um baixo astral do cacete. Jurei que o mundo era mesmo uma merda. Como se não bastasse, comecei a fazer parte daquele grupo chamado de sexualmente inativo. Aí me bateu uma paranóia.
Liguei pro médico e ele me tranquilizou, o tal comprimido diminui o apetite sexual. Ah bom, achei que era eu! É culpa do remédio. Parei na hora. Joguei a caixinha fora.
Não consigo entender essa gente. Estão rindo do quê? Ninguém come ninguém e vivem às gargalhadas.

Trecho do livro O PAI INVISÍVEL (Ed Objetiva)

PAPERBACK RAITA


Meu amigo Paul Ralphes é um grande sujeito. Nascido e criado em Shrewsbury, cidade do interior da Inglaterra a poucos quilômetros de Liverpool, estudou cinema e virou músico. Fez sucesso com a banda Bliss e, em viagem promocional pelo Brasil, conheceu Rosana Ferrão. Se apaixonou e ficou por aqui.
Rosana é uma escritora de talento. Com um texto leve e divertido, é autora de livros e roteiros de sucesso, no cinema e na televisão.
Do casamento de Paul e Rô, nasceu Dylan, um moleque bacana que toca bateria, tem uma banda, já participou de gravações e lançou, como escritor, um livro infantil em parceria com a mãe. Durante a sessão de autógrafos de lançamento do livro, comentei com ele que, mesmo ainda tão novo, já estava consagrado e perguntei o que mais ele poderia querer na vida. Me respondeu confiante: “estou pensando em fazer um filme”
Voltando ao pai da família. Paul é um sujeito educado, de fino trato e convivência agradável. Um verdadeiro gentleman inglês, do tipo que religiosamente toma seu chá às 5 da tarde. Além de suas qualidades artísticas como músico e produtor, soma-se ainda uma vocação para a culinária, a qual tem se dedicado na intimidade, para deleite dos amigos.
Pois bem. No aniversário da Rô ele resolveu preparar um jantar misturando a cozinha mexicana com a indiana. Uma temeridade. Mas o que poderia ter sido um desastre, nas mãos do chef Ralphes se transformou em uma deliciosa experiência gastronômica.
Para identificar cada prato na grande mesa da sala e separar o que seria mais ou menos picante, Mr. Paul escreveu pequenos cartões dando nomes aos quitutes. Ao final do jantar, encontrei-o cabisbaixo ao lado da mesa. Estava triste porque ninguém havia percebido sua brincadeira. Com refinado senso de humor, havia batizado um tradicional molho indiano a base de yogurt e hortelã com o nome de Paperback Raita, uma clara alusão à obra de Lennon & McCartney.
Tentei confortá-lo com o argumento de que somos apenas um bando de ignorantes, gente tosca, embrutecida pelas pequenezas do dia a dia, sem capacidade para apreciar sutilezas com esse grau de sofisticação e refinamento. Tanto na arte culinária como em outras virtudes do espírito humano, entre elas, o bom humor, a arte de enxergar graça, leveza e poesia onde a maioria vê apenas um prato de comida.
Ele sorriu, agradeceu minha tentativa de apoio, mas estava desolado. No próximo jantar vou ficar mais atento aos detalhes.